sexta-feira, 26 de março de 2010

ARMA BRANCA


“Como vivemos em uma democracia e como os dirigentes precisam de votos, eles vão perceber que, quando vocês começam a se manifestar, eles próprios têm de mudar, porque se não mudam são mudados...”.

Mário Soares, político português



Em meu último post, intitulado Aquecimento global, defendi abertamente a anulação do voto em não importa qual eleição, justificando, contudo, a minha decisão: não confio nos políticos que aí estão. Ao mesmo tempo, questionei a obrigatoriedade do comparecimento as urnas. Afinal, se vivemos em uma suposta democracia, nada mais coerente do que garantir ao povo o direito à decisão de comparecer ou não as urnas. Para isso, seria necessária uma mudança na legislação eleitoral – já tão caduca –, que seria a do Brasil adotar o voto facultativo.

O escritor português José Saramago, por sua vez, que critica duramente as instituições, os partidos políticos e as autoridades governamentais, questionando a sua credibilidade, defende explicitamente o voto em branco – não a anulação do voto – posição que expôs claramente em seu livro Ensaio sobre a lucidez, publicado em 2004. Afinal, Saramago repudia a atual dita democracia que, para ele, apenas respalda políticos cuja idoneidade é duvidosa, já que, ao serem eleitos, fazem exatamente o contrário daquilo que foi prometido aos eleitores.

O fato é que votos anulados ou em branco em não importa qual eleição nada mais é que o reflexo da decepção, da indignação e do esgotamento da paciência dos eleitores devido à má conduta e o descrédito da maioria dos políticos, independentemente de seus partidos e das suas ideologias. Tal decisão, portanto, representaria uma tomada de consciência da população, que, a seu modo, teria curado-se da cegueira e, a tempo, recuperado a lucidez. No livro Uma longa viagem com José Saramago, do jornalista e escritor português João Céu e Silva, publicado em 2009, Saramago destila:

“A direita para governar não precisa de idéias, só precisa de autoridade e se puder confirmar essa autoridade com uns resultados eleitorais democráticos, uns votos que lhes sejam favoráveis, então fica encantada. Mas de ideias não precisa! Já a esquerda não pode viver sem ideias. Aristóteles já dizia no seu Tratado político que num governo democrático os pobres deviam ser maioria, porque o são na sociedade. Não é que os ricos não devessem estar representados no governo da Polis, mas, dizia ele, teria de ser em proporção. Então, se isso tivesse sido feito ou se tivesse sido possível fazer – foi uma loucura de um filósofo – teríamos num governo de vinte membros logicamente dezessete pobres e três ricos. E essa continua sendo a realidade porque os pobres são a maioria! A esquerda e a direita são conceitos ou topografias que nos vêm da Revolução Francesa – chamou-se assim porque eles se sentaram naqueles lugares, à esquerda ou à direita – sem que houve a ideia de uma espécie de auto-definição ideológica. Mas a esquerda necessita de ideias, de as ter e de as discutir constantemente. (...) Nós vivemos num mundo, pelo menos na parte a que chamamos de democrática, em que tudo é possível. Tudo tem discussão possível. Pode discutir-se tudo e neste momento ao redor do mundo há congressos, mesas redondas, simpósios e não sei que mais em que se debate tudo o que é científico mais isto e aquilo. Estranhamente, há uma coisa que não se discute, que é precisamente a democracia. Considera-se a democracia uma espécie de paradigma, que está aí e acabou-se. E va,os seguindo com um regime absolutamente hipócrita, a chamar democracia a uma situação em que os cidadãos não têm outro papel senão o de votar. Nenhum outro papel mais: e votam tirando um governo para pôr outro no seu lugar, que pode parecer diferente mas vai dar na mesma”.

A coisa é tão séria que, no Brasil, por exemplo, o artigo 1° do parágrafo 1° da Constituição Brasileira de 1969, ou seja: Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido, foi alterado na Carta Magna de 1988, atualmente vigente. Os constituintes – imagino por quais motivos – decidiram substituí-lo por: Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição (artigo 1°, parágrafo único). Resumindo: é como se o povo tivesse passado uma procuração em branco nomeando outrem para agir em seu nome.

Como diriam os gaúchos:
Quanta barbaridade, tchê!



Nathalie Bernardo da Câmara

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