sábado, 22 de janeiro de 2011

PANAHI: RETROSPECTIVA III

FORA DO JOGO?

“Um cineasta ser preso é intolerável. Acredito que ninguém pode ficar indiferente em relação à situação nem pode abandonar a esperança. Quando um artista é preso, a arte está sendo atacada. Precisamos de explicações. Não posso entender como um filme pode ser considerado crime, principalmente se ele ainda nem foi feito...”.
 
Abbas Kiarostami
Cineasta iraniano, interrompendo o início da coletiva do filme Copie conforme (Cópia fiel), em maio de 2010, ao receber a informação de que o amigo, compatriota, roteirista e diretor Jafar Panahi, reconhecido pacifista e membro do Conselho Nacional pela Paz no Irã, mas, à época, aprisionado desde o início de março por acusações de “crimes não-especificados pelo governo do Irã”, estava fazendo greve de fome pelos maus tratos recebidos na prisão e pelas constantes ameaças contra a sua família.



Segundo a Anistia Internacional, a lista de cineastas iranianos de alguma forma silenciados pelo regime iraniano não é pequena. Quiçá, o fato de Panahi ser um roteirista e diretor renomado, tendo conquistado alguns prêmios em festivais internacionais de cinema, o seu caso esteja ganhando maior visibilidade, gerando mais repercussão, atraindo a atenção não somente de artistas e intelectuais, mas, também, de políticos e organismos internacionais engajados em causas humanitárias, bem como sensibilizando todos aqueles que, de alguma forma, se indignam diante de uma violência, não importa a sua motivação.

O fato é que, apesar de, em muitos casos, atribuírem certos atos violentos ao abuso de poder para que, a todo custo, possa se garantir a manutenção desse mesmo poder, que, a priori, se traduz no sonho de consumo da ganância, toda e qualquer violência é, na verdade, um reflexo de uma mente insana, seja por um curto espaço de tempo ou mesmo um maior, a exemplo de surtos psicóticos – insanidade essa que tanto pode ser genética ou adquirida, no caso, por um fanatismo religioso. Bom! Com esse meu devaneio, digamos assim, queria apenas refletir sobre o alto grau de periculosidade das autoridades iranianas, no mínimo desencadeada por uma aguda esquizofrenia...

Digo isso porque, quando foi em preso em 2010, Panahi foi acusado de produzir um filme sem a autorização do governo do Irã... O cineasta Abbas Kiarostami, por sua vez, questionou: “Não posso entender como um filme pode ser considerado crime, principalmente se ele ainda nem foi feito...”. Enfim! Entre a prisão de um e a declaração do outro, um episódio que se passou no presídio complementa claramente o meu raciocínio. Ou seja, através de uma ligação telefônica da prisão, feita em março por Panahi para a sua esposa, ele relatou que, em uma manhã de domingo, o levaram para a sala de interrogatório e o acusaram de estar filmando dentro da cela...

E eu perguntaria: isso é ou não, por parte das autoridades iranianas, um reflexo de insanidade mental? Afinal, convenhamos – e bastam dois neurônios para saber disso –, como o cineasta, ele ou qualquer outro, poderia rodar um filme, independentemente do tema, em condições tão adversas, não dispondo sequer de um celular com câmera em uma cela de cadeia? Urge, portanto, depois da sua última prisão em dezembro passado, que os apelos para a libertação de Panahi se intensifiquem e que ações sejam implementadas, nem quem sejam embargos de não importa qual natureza ao Irã, a fim de coibir tamanhas injustiças.

E isso porque o próprio ministro da Cultura para Assuntos Cinematográficos, Javad Shamaqdarii, já deixou bem claro – e isso desde o ano passado – as medidas que deveriam ser tomadas para restringir ainda mais a liberdade de criação dos artistas iranianos como um todo. No caso dos cineastas, aquele que ousar exibir os seus filmes no exterior, sem a prévia autorização das autoridades do Irã, bem como atores e técnicos que colaborarem em gravar filmes sem as devidas permissões do governo, serão devidamente punidos. À época de tal declaração, um documentarista, que pediu para não ser identificado, disse: — Querem evitar que a gente divulgue uma imagem do país diferente da oficial.

Tentando justificar o injustificável, que são as medidas restritivas à produção cinematográfica do Irã, Shamaqdarii diz que os cineastas iranianos “podem dialogar com a nossa gente através dos seus filmes, mas eles iriam contra os nossos interesses nacionais se quisessem dialogar com estrangeiros sobre assuntos delicados (quais, mesmo?), o que devemos evitar”, acrescentando: “Podemos confiar na nossa gente, não nos estrangeiros”. Sei não, mas, se isso não for ser uma mente obtusa eu já não sei mais de nada... Sem falar que vivemos em uma época onde a informação, incluindo, sobretudo, a internet, anda a rodar mais rápido do que pião de cego.

Falando em limitação... Que o diga a letra da canção Si se calla el cantor (1977), de autoria do compositor, cantor e escritor Horacio Guarany, arrebatadoramente interpretada pela cantora Mercedes Sosa (1935 - 2009) e pelo compositor, cantor, violinista e escritor Atahualpa Yupanki (1908 - 1992) – um belíssimo trio argentino, que fez da canção um hino de resistência à ditadura militar na Argentina (1976 - 1983). É, pelo visto, é isso o que estão querendo fazer com o iraniano Panahi, ou seja, calar a voz do cineasta, calando, assim, a voz do Irã, mas a voz de um Irã que se quer liberto do jugo da tirania, que só sabe gritar, berrar, se impondo através da força, ao invés do diálogo, do entendimento, da democracia. Só que, como diz a canção, si se calla el cantor... calla la vida.


Nathalie Bernardo da Câmara

 
 
 
 
A Poderosa arma da mordaça
 
Por Ivonete Pinto*


Abbas Kiarostami é o cineasta iraniano de maior prestígio no exterior, tendo recebido a Palma de Ouro em Cannes por Gosto de Cereja (Tam’e Guilass, 1997). No último Festival de Cannes, exibiu Cópia Fiel (2010) seu filme mais ocidental com uma produção francesa e italia, que deu a Juliette Binocche o prêmio de melhor atriz no tradicional evento francês.

A importância de Kiarostami no cenário internacional pode não resultar em bilheteria, já que seus filmes não conseguem nem ser lançados aqui no Irã, onde estou em viagem, mas suas palavras repercutem, suas opiniões, em especial junto aos jovens, alcançam ressonância considerável. Por isso, havia uma expectativa muito grande em saber o que o diretor de Através das Oliveiras (1994) pensa sobre a sentença recebida pelo cineasta Jafar Panahi, condenado a seis anos de prisão e 20 anos sem poder filmar pelo regime de Ahmadinejad.

Panahi, que também coleciona prêmios em festivais internacionais – como o Leão de Ouro em Veneza por O Círculo (Dayereh, 2000) –, apresenta um estilo diferente de Kiarostami quanto à forma. Trabalha menos com metáforas e experimentação de linguagem e mais com críticas diretas ao regime dos aiatolás.

Em O Círculo, denunciava a realidade de uma sociedade por trás dos véus – a existência da prostituição, que o governo tenta negar. Em Fora de Jogo (Offside, 2006), mostrou a absurda situação de uma jovem que adora futebol, mas não pode entrar num estádio, vetado às mulheres. Em Ouro Carmim (Talaye Sorkh, 2004), um entregador de pizza, doente em desespero, assalta uma joalheria e acaba morrendo de forma trágica.

Os avanços, em termos de liberdade, alcançados nos dois períodos do ex- presidente Khatami foram por água abaixo com Ahmadinejad. A rejeição desse presidente, que superaria os 90%, levou a população às ruas, e foi nesse contexto que Panahi se tornou uma voz eloquente. Inúmeras pessoas (ninguém sabe ao certo quantas) estariam presas, mas Panahi é o nome mais conhecido.

Depois de meses de cárcere e, mais tarde, de prisão domiciliar, aguardando julgamento, em 20 de dezembro foi divulgada a sentença: seis anos de prisão e 20 anos sem poder filmar nem dar entrevista para a imprensa estrangeira ou a iraniana.

Enquanto isso, o país, que vive uma gigantesca crise econômica, assiste ao governo cortar em 50% os subsídios para alimentos, energia elétrica e gasolina.


Clima no país reflete o desgosto dos iranianos com Ahmadinejad


Ou seja, o clima no Irã não está dos melhores. Por um lado, um aumento geral de preços, por outro, a volta da perseguição política mais ferrenha, que remonta aos tempos do início da revolução liderada pelo aiatolá Khomeini. E é nesse clima que foi realizada a exibição do mais novo filme de Kiarostami, Sea Egg. Foi no último dia 28, no Tehran’s Mellat Cinema, um complexo de salas de dar inveja a qualquer país. A sessão foi seguida de palestra com direito a perguntas mediadas pelo crítico Alireza Sami- Azar.

Na verdade, não houve propriamente uma palestra, pois Kiarostami costuma ser reticente sobre o significado de seus filmes. Tão logo falou um pouco sobre a produção, alguém da plateia o interrompeu, querendo saber quais metáforas estavam em jogo numa produção que mostra apenas as ondas do mar batendo violentamente contra um rochedo onde estão três ovos pertencentes a aves das quais só ouvimos os sons. Apesar da violência descomunal das ondas, os ovos não se quebraram, apenas são deslocados de lugar.

A resistência dos pequenos ovos implica metáforas perfeitas para o atual momento político. Outras questões iam sendo feitas na tentativa de que Kiarostami falasse mais abertamente sobre essas metáforas.

Perguntei ao amigo iraniano que traduzia para mim o debate se eu poderia tocar no nome de Panahi. Ele respondeu que eu era a única pessoa naquela plateia que poderia perguntar sobre ele. Afinal, o evento era realizado num lugar público, com várias autoridades ligadas à cultura presentes, além da imprensa. Com a ajuda do tradutor, perguntei então a Kiarostami se ele tinha intenção de iniciar algum movimento, dentro e fora do Irã, para conseguir a libertação do colega de trabalho.

Alguns segundos de silêncio e Kiarostami fala pela primeira vez no Irã sobre a prisão de Panahi. E fala, também para minha surpresa, de forma direta, sem rodeios. Disse que, em princípio, é contrário a movimentos, pois não acredita neles como estratégia para conseguir algo. Mas que, diante de situação tão absurda, tão inaceitável, não sabia o que pensar, muito menos como agir.

– Como é possível prender um diretor de cinema por um filme que ele sequer filmou? Não há uma imagem editada sequer desse filme que Panahi está sendo acusado de fazer.

Kiarostami contou também que nunca em sua vida, isto é, nem na época do Xá, viu alguém ser impedido de trabalhar, de exercer seu ofício por 20 anos. Encerrou afirmando que estava chocado e que não sabia o que fazer.

Nos jornais do dia seguinte, conforme me contam os amigos iranianos, nenhuma palavra sobre Panahi e a repercussão internacional do caso. Falavam apenas dos ovos sendo atacados pelas ondas do mar.

*Jornalista e crítica de cinema brasileira, que, em viagem ao Irã, obteve do cineasta Abbas Kiarostami um corajoso depoimento, publicado no Diário Catarinense no dia 15 de janeiro de 2011, criticando a condenação do colega Jafar Panahi.




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