sexta-feira, 22 de abril de 2011

22 DE ABRIL DE 1500: DIA DO "ACHAMENTO" DO BRASIL

Detalhe: Por extensão, estou igualmente homenageando os povos indígenas, cujo dia é comemorado no dia 19, ao mesmo tempo em que, no Dia Mundial da Terra, 22, faço um alerta...


  
Calendário solar – Arte asteca (1325 - 1521)
Acervo do Museu Nacional de Antropologia da Cidade do México


  
E no princípio era a Mãe Terra, reinando, absoluta, nas florestas tropicais da América do Sul, protegendo, preservando e iluminando as suas matas e os seus habitantes, seres vivos de origem animal, vegetal e mineral, os quais, por um romântico útero, vinham ao mundo, eram animados, ganhando vida. No caso dos humanos, de origem animal, considerados nativos ou aborígines, esses passaram, posteriormente, por uma questão de equívoco, a ser chamados de índios ou, mais especificamente, de povos indígenas, cada um habitando uma dada mata, um território determinado, desfrutando, racionalmente, das riquezas e belezas do seu habitat, ao mesmo tempo em que, ao longo do tempo e apesar das adversidades, o seu modus vivendi fosse conservado, ou seja, os seus hábitos e costumes, bem como os valores que lhes eram inerentes, as suas culturas e as suas tradições. Enfim! Aquela época era o que se poderia chamar de idílio, uma rara harmonia entre as matas e os povos que nelas habitavam, sobretudo porque, todos, indistintamente, depositavam as suas esperanças e a sua fé em uma entidade que, apesar de abstrata, eles a tinham como superior, que era Tupã, uma espécie de guia espiritual, que, sem questionamentos, os faziam acreditar, por exemplo, na proficuidade das suas colheitas sazonais. Respeitado e temido, Tupã mais parecia um ilusionista, já que, era público e notório, possuía poderes que, já bastava piscar um olho, ele se tornava onipotente, onipresente e onisciente, podendo, ao mesmo tempo, se encontrar em qualquer lugar e, tipo satélite, dar conta de tudo o que se passava em cada tribo e em cada mata, vasculhando, ainda, todo tipo de fofoca e de babado, inclusive dos segredos de cada um. Daí ninguém ousar desafiá-lo. Questioná-lo, então! Hors de question...

  
Charge: Cristiano Gomes



Só que o mais curioso é que essa passividade e submissão era perceptível até mesmo entre os caciques, que ocupavam o topo das patentes na hierarquia social e política das tribos, sendo, portanto, os seus chefes, e nos pajés, homens ou mulheres – variava de cultura ou tradição familiar –, que, aliás, eram os únicos que detinham o conhecimento da diversificada e eficiente farmacopéia disponível na natureza, responsáveis, com muito louvor, pela cura dos seus pares, independentemente da natureza dos seus males. Porém, o mais estranho disso tudo são determinados aspectos dos fatos narrados, as suas próprias entranhas, como se entre os povos indígenas existisse um tipo de pacto de silêncio, ou seja: ninguém deve confrontar a autoridade da Mãe da Terra nem os desígnios de Tupã, muito menos desobedecer as decisões de um cacique ou as orientações de um pajé. O fato é que, de essência genuína, o que os povos indígenas nem desconfiavam é que, certo dia, alguém faria isso...

Ocorre que, enquanto o seu lobo não vinha, eles continuaram levando a sua vida, sendo a fonte da sua subsistência os 4 elementos da natureza: a água, a terra, o fogo e o ar, que, aliás, nada cobravam para provê-los. Sim, tudo era de graça - não existiam impostos, contas a pagar e, muito menos, cheques pré-datados. Desse modo, nada tirava o sono dos povos indígenas, nem mesmo eventuais ameaças de tribos rivais. Neste caso, contudo, a única exceção era quando índios do bem, nada antropofágicos, eram atacados por tribos canibais... Sim, é verdade, nem tudo, nem mesmo para os povos indígenas, era paz e amor. De qualquer forma, tirando o inconveniente das incompatibilidades, os povos indígenas sempre dormiram o sono dos justos, desconhecendo, aliás, de maneira em geral, o que fosse pesadelo, repousando, e, para a felicidade geral das tribos, estampando um rosto lindo, sorrindo – tamanha era a mansidão da sua contemplação...





 Uma curiosidade é que há um erro cultural na descrição da cunhantã retratada acima, dormindo em berço esplêndido, que é o do corte do seu cabelo. Afinal, antes da chegada dos jesuítas ao Brasil, na comitiva do governador-geral Tomé de Sousa (1515 - 1579), em 1549, a diferença entre o corte de cabelo de adultos e crianças era praticamente nenhuma, já que, culturalmente, os índios tinham, por hábito, cultivar as suas longas madeixas. Só que, como se não bastasse inserir os indígenas em uma cultura completamente adversa a sua, os submetendo a um processo de total submissão, já que os considerava um povo arredio, bronco e preguiçoso - quando lhes convinha, os nativos eram gentios, cordatos e generosos -, os insolentes jesuítas achavam pouco e, além de tentar catequizá-los – muitas vezes catequizando, mesmo –, utilizando uma língua cujo sotaque deve ter arrebentado os tímpanos de muitos índios, tacavam quengas de coco em suas cabeças e lhes metiam uma afiada tesoura em suas belas cabeleiras, repaginando o seu visual, reproduzindo - diga-se de passagem - o corte de cabelo que eles mesmos, os padres, adotavam... Um dia, enfim, chegou o dia dos jesuítas pararem de infernizar os índios. Afinal, deve ter sido dose! Jesuíta para lá, jesuíta para cá...

O fato é que, em 1591, embora não de livre e espontânea vontade, os jesuítas foram expulsos do Brasil, mas não sem antes, é claro, deixarem contaminada a cultura indígena, de certa forma descaracterizando-a. Só que, como Tupã é grande, os povos indígenas, mesmo que aos trancos e barrancos - às vezes, literalmente -, resistiam à medida do possível. A alimentação dos índios, por exemplo, era uma das mais saudáveis - não digo hoje, mas... Bom! Povo bravo e guerreiro, o índio trabalhava, sim, e muito, dentro, é óbvio, das suas necessidades e as da sua tribo. Afinal, qual o sentido de se exaurir de trabalho, acumular uma quantidade exorbitante de vil metal e não dispor de tempo para usufruir dos bens que esse mesmo vil metal pode adquirir, nem, muito menos, dispor dos bens que, gratuitamente, a natureza oferta? Enfim! Em sua produção artesanal, os índios produziam instrumentos de subsistência (arcos, flechas, bodoques, zagaias, canoas, remos e zingas, artefatos líticos, armadilhas para caçar, pau de cavouco, porrete para pesca), bem como instrumentos domésticos e de trabalho (objetos em madeira, em conchas de moluscos, em cerâmica, em couro, trançados e tecelagem, entre outros) [1]. Sim, a criatividade indígena é uma das mais primorosas.






Tira-se por sua arte e pelo seu artesanato, sempre muito diversificados, de qualidade exemplar. Passemos, contudo, ou melhor, retornemos ao início do grande drama que, desde 1500, os povos indígenas dessas plagas passaram a viver. Tudo começou, então, quando, sobrevivendo a uma avaria no mar, navegadores portugueses desembarcaram no Ilhéu de Coroa Vermelha, nas águas da Baía de Cabrália, na Bahia, e, dois dias após o tão decantado Terra à vista!, ainda em alto-mar, estabeleceram o primeiro contato, em terra, com os habitantes locais - obviamente que ajudados por um gaiteiro -, equivocadamente achando que, de fato, deveriam estar no Cabo da Boa Esperança, tão bem recebidos que foram pelos nativos hospitaleiros. Coitados... Sem maldade em seus corações, nem desconfiaram que, por sua cordialidade em receber aqueles seres – pelo menos, era o que deve ter parecido –, fantasiado com belas vestes e aparentes bons modos, apesar dos dentes provavelmente com vestígios de escorbuto, estavam, tragicamente, selando o seu triste destino.






“Assim, não demorou muito, a cobiça dos navegadores lusos foi atiçada, logo transformando toras e mais toras de pau-brasil (caesalpina echinata) e demais madeiras consideradas de lei, ouro, araras, com as suas exuberantes plumagens, e, até mesmo, exemplares vivos ou mortos de índios em cifrões”. Como isso foi possível? “À oportunidade, um dos tripulantes da esquadra comandada por Pedro Álvares Cabral (1467 - 1520) presenteou os índios, como prenda por seu exotismo, com um singelo espelho. Não deu outra! “Com aquele estranho objeto do desejo em mãos”, o aborígine formulou a clássica pergunta: "Espelho, espelho meu, existe alguém mais simplório do que eu?”. [2]







“Foi a gota d'água, ou melhor, a senha para que, de imediato, os portugueses percebessem que não seria, assim, tão difícil tomar para si as terras de tão gentis nativos, os próprios nativos e, é claro, as suas riquezas, logo criando a, hoje, tão conhecida propaganda enganosa. Afinal, em questão de dias, os portugueses puseram as mangas de fora e revelaram as suas verdadeiras intenções. Utilizando a força braçal indígena, eles derrubaram o primeiro dos milhares exemplares de pau-brasil, extremamente lucrativo, que, durante séculos, confiscariam da Mata Atlântica brasileira, os transportando para a Europa”. Aqui, contudo, um parêntese... Nesse ínterim, uma enorme extensão de terras cobertas de mata virgem passou a ser acintosamente violada não somente pelos portugueses, mas, também, por corsários franceses, holandeses e ingleses - excluídos do Tratado de Tordesilhas, assinado por Portugal e pela Espanha em 1494 - através da extração, sem aparente fim, de pau-brasil, utilizado para tingir tecidos, construir navios e fabricar móveis considerados preciosos. “Tal prática, ao longo dos séculos, deu início ao processo de devastação da Mata Atlântica” em todo o litoral brasileiro – atualmente, existe, no país, apenas 7% do que ela já foi um dia...”. [3]






Bom! Retomando à derrubada do primeiro exemplar de pau-brasil da Mata Atlântica brasileira por povos estrangeiros... “Madeira no chão, os portugueses esculpiram, toscamente, uma cruz, portando as armas e as divisas de Portugal, e, no dia 26 de abril, como marco da sua nova conquista, amparada pelo Tratado de Tordesilhas, erigiram o símbolo cristão no Ilhéu de Coroa Vermelha e celebraram a primeira missa no Brasil, arrogantemente tomando posse das terras que mal conheciam e que, aliás, já tinha dono. Achando pouco, os primeiros posseiros que o Brasil conheceu - nascia, aí, a prática de grilagem de terras - decidiram realizar uma segunda missa. Desta vez, na foz do rio Mutarí, no dia 1° de maio. No dia seguinte, ou seja, no dia 2 de maio, após deixar alguns pobres coitados em terra-firme, abandonados a sua própria sorte, já que, apesar de firme, a terra era totalmente desconhecida, Pedro Álvares Cabral lavou, literalmente, as mãos e partiu rumo às Índias, mas não sem antes, é claro, abastecer as suas naus com lenha, água doce e demais artigos básicos necessários à travessia. O curioso é que, apesar de passar apenas dez dias na Terra dos Papagaios, Cabral teve tempo suficiente para, em pouco tempo, fundamentar as bases de muitos dos estragos que, futuramente, seriam cometidos no Brasil”. [4]




Lá pelas bandas de 1521, contudo, “a Terra dos Papagaios, chamada de Ilha de Vera Cruz, já havia mudado de nome duas vezes: Terra de Santa Cruz e, por fim, Brasil. Curiosamente, o processo de colonização do Brasil pelos portugueses só teve início, de fato, duas décadas depois do seu achamento. E apenas devido à constante presença de franceses, holandeses e ingleses no Brasil. Antes disso, o domínio luso fez, sim, do Brasil um celeiro, mas um celeiro de pau-brasil, que os portugueses, num afã sem precedentes, já que as especiarias da Índia estavam em baixa, extraiam sem dó nem piedade. Com a colonização, então, iniciada, à medida que os portugueses avançavam em suas conquistas, aumentava a supressão das liberdades individuais e coletivas da maioria dos grupos indígenas do Brasil, o que lhes fez conhecer o Inferno, onde estão até hoje. Tudo matemático. Ou seja, a exploração dos indígenas era proporcional ao acúmulo de bens dos portugueses. Ou melhor, quanto maior era a riqueza de um, maior o sofrimento do outro... Afinal, cordatos e generosos – qualidades que foram mal interpretadas como ingenuidade e burrice –, os índios foram presas fáceis para os portugueses. Ávidos por se apropriarem do que não lhes pertencia, os portugueses, na maioria das vezes, e sem o menor escrúpulo, recorriam as ações mais bárbaras e hediondas quando o assunto era o vil metal”. [5]



Obra da artista modernista brasileira Tarsila do Amaral (1886 - 1973), capa de revista homônima em 1925.

 

Foi aí que, “achando pouco, diante de tanta fartura, e sempre querendo mais, os colonizadores lusos logo se encarregaram de importar”, como foi dito antes, “uma companhia de jesuítas”. Sim, liderados, então, pelo padre Manoel da Nóbrega (1517 - 1570), os primeiros jesuítas que vieram ao Brasil, cuja Ordem, de clérigos regulares, foi criada pelo basco Inácio de Loyola (1491 - 1556), no ano de 1539, em Paris”, de um tudo fizeram para se empenhar em sua missão. “Afinal, até açoitar índios eles açoitaram! Sim, como se a sua verdade fosse a única e todos, querendo ou não, tivessem de abraçá-la – de preferência, sem arco e flecha. Um dos casos mais famosos, mas pouco divulgado, foi o do jesuíta [espanhol] José de Anchieta (1534 - 1597)”. [6]



Emissão comemorativa, emitida no dia 9 de junho de 1997, em homenagem aos 400 anos da morte do jesuíta José de Anchieta, pelos Correios do Brasil.



“Por mais incrível que pareça, o padre Anchieta acreditava, entusiasmado que estava com o ouro e com a sua fácil exploração, que, através de relatos sobre o metal, encaminhados ao rei, convenceria este a enviar uma esquadra unicamente para destruir os ‘perversos que resistem à pregação do evangelho e submetê-los ao jugo da escravidão’. Que paradoxo! A verdade é que faltou bom senso aos jesuítas. Ao invés de se irritarem com a nudez e as práticas de canibalismo e poligamia dos índios, eles pecaram por não terem aproveitado a sua permanência nos Trópicos para se despojarem das longas vestes, nada apropriadas ao clima local”. [7]




... “Quanta pequenez de espírito! Sim, porque os jesuítas também sentiram inveja da influência e do poder” dos pajés, que eles, pejorativamente, chamavam de curandeiros, “com a sua farmacopéia rica em ervas e chás. E, para piorar a situação, os missionários religiosos, juntamente com os demais colonizadores portugueses, dependentes que eram das suas próprias leis, cegos pela fé absoluta no catolicismo e subjugados ao rei que o dominavam, contribuíram, e muito, para disseminar, mundo afora, que os indígenas não tinham lei, fé nem rei. Diziam, por exemplo, que os índios precisavam de uma organização social, de lei – daí negarem a cultura indígena e reprimirem os seus hábitos e costumes, tidos como ‘selvagens’. Achando pouco, disseram que os índios precisavam de uma religião, de fé – daí tentarem, a ferro e fogo, catequizá-los. Por fim, disseram, também, que os índios não tinham senhores soberanos, um rei – daí a escravidão a que muitos foram subjugados, em nome da Coroa Portuguesa. De novo, como podemos ver, eles se valeram da propaganda enganosa – sempre tão útil, quando convém. Acontece que os portugueses não entendiam que os indígenas tinham, sim, uma lei, mas não a do branco; que tinham, também, uma fé, só que em Tupã, não em Cristo; bem como tinham um rei, só que chamado de cacique. Desse modo, os portugueses é que passaram a se comportar como verdadeiros selvagens, massacrando tribos e dizimando inúmeros povos indígenas à revelia do direito destes à vida...”. [8]


Foto: Tânia Costa
A pajé, Fafá, minha amiga, da reserva indígena da Baía da Traição, na Paraíba, onde a sobra dos potyguara habita e onde já passei um réveillon...



Um dos povos indígenas que, apesar das intempéries, ainda resiste é, por exemplo, o potyguara – tiro a minha casquinha... “Segundo o folclorista [brasileiro] Luís da Câmara Cascudo (1898 - 1986), após a chegada dos portugueses no Rio Grande do Norte, três séculos foram suficientes para que a região perdesse a sua população aborígine, basicamente constituída por três grandes grupos: os gê, os cariri e os potyguara”. Hoje, sequer existe um autêntico exemplar no Rio Grande do Norte, embora dê nome a quem nasce no Estado. “A bem da verdade, àquela época, a Capitania do Rio Grande começava na Baía da Traição, hoje pertencente à Paraíba, e ia até onde, hoje, o Rio Grande do Norte faz fronteira com o Ceará”. Porém, “um belo dia do séc. XIX, movido, quiçá, por algum sentimento ufanista, dom Pedro II (1825 - 1891) decidiu fazer uma boa ação, garantindo aos potyguara o direito a um pedaço de terra”.

Sim, “no dia 27 de dezembro de 1859, o monarca doou aos potyguara ‘a sesmaria de Baía da Traição – na realidade, uma re-doação, porque a sesmaria já era deles há muito tempo’. Ou seja, as terras dos potyguara, transformadas em sesmarias, antes mesmo de serem sesmarias já lhes pertenciam. Porém, os documentos que poderiam comprovar o nobre gesto nunca foram encontrados e devem ter sido destruídos pelos invasores das terras indígenas”. Enfim! “Bem pouco tempo depois da chegada do homem branco as terras que, hoje, vão da Paraíba até o Maranhão, os potyguara falavam a língua Tupy, habitavam o litoral, viviam da pesca e da agricultura, plantando grãos e raízes, comiam frutas, se deliciavam com mel e apreciavam a carne de animais ditos de caça. Além disso, quando, após alguma luta, com tribos vizinhas, faziam algum prisioneiro, eles realizavam certos rituais, em cujo cardápio constava carne humana – a carne do prisioneiro –, embora, vale salientar, não sem antes darem um trato no mesmo”.

É verdade. Afinal, “apesar da propaganda de que os potyguara não eram hospitaleiros, as índias até que se esforçavam. Asseadas e vistosas, elas sabiam que higiene era fundamental, sobretudo para agradar as suas narinas. Desse modo, nos dias que antecediam ao sacrifício, elas se dedicavam de corpo e alma ao prisioneiro, o cobrindo de afagos, lhe dando comida e deixando o seu corpo lavado e sem impurezas, satisfazendo, portanto, todas as exigências de um rigoroso controle de qualidade, o qual era feito pelo chefe da tribo, que autorizava ou não o consumo do produto. Mas, práticas de canibalismo à parte, já que se os potyguara comiam a carne dos adversários era porque acreditavam que os tornariam fracos, presas fáceis numa próxima batalha, ou qualquer outra sorte de aberração que o valha, os comedores de camarão, segundo o folclorista Câmara Cascudo, eram, decididamente, um povo livre e feliz.” Porém, no séc. XVI, quando o Brasil passou a ser dividido em Capitanias Hereditárias, a liberdade e a felicidade dos índios, de uma maneira em geral, passaram a ter os seus dias contados”. [9]

 

Ritual de canibalismo

 

“Nos dias de hoje, contudo, os pouco mais de dez mil remanescentes de potyguara, segundos dados da Fundação Nacional de Saúde - FUNASA, obtidos em 2004, ocupam 333.757 hectares, distribuídos em uma área que abrange os municípios de Baía da Traição, Rio Tinto e Marcação. Os potyguara do início do séc. XXI, aliás, em nada lembram os seus valorosos e guerreiros ancestrais, na luta diária pela sobrevivência, no seu modus vivendi. Sim, porque, apesar de viverem a beira-mar, eles preferem pescar em rios e mangues. Só que, devido à poluição produzida pelas usinas de álcool e de cana-de-açúcar de regiões limítrofes, que despejam os dejetos nos rios, cujo curso passa pelas aldeias, a atividade pesqueira dos potyguara, que inclui os mangues, a coleta de crustáceos e moluscos e as suas criações de camarão – está seriamente comprometida. No entanto, esse povo “arretado” vive, também, da agricultura de subsistência, plantando mandioca – o principal produto agrícola da região –, cana-de-açúcar, milho, feijão e hortaliças, bem como colhendo frutos e ervas”. [10]


Foto: Nathalie Bernardo da Câmara
Índio que atuou como figurante no filme Batalha dos Guararapes, de Paulo Thiago, lançado em 1978, que retratou a luta entre holandeses e luso-brasileiros, nos arredores de Recife, em Pernambuco, no início do séc. XVII.



“Além disso, os potyguara perderam o hábito de comer carne humana na brasa e substituíram a carne dos animais de caça – até mesmo porque estes não mais existem –, por carne de porco, galinha, pato e boi. No entanto, eles continuam, apesar dos pesares, sendo um povo feliz, enfrentando e tentando superar, com dignidade e altivez, qualidades que lhe são inerentes, as adversidades. Curiosamente, os brancos – parece – não sabem viver sem os índios – no caso, os potyguara –, contaminando-os até com a sífilis e o vírus HIV. Sim, porque gripe não é mais novidade!” o que dirá dengue... “Nem para os potyguara nem para a maioria dos demais grupos indígenas do país, afetados, inclusive, pela mortalidade infantil, casos de emigração e discriminação. No caso dos potyguara, a pobreza é, também, um grave problema. Para tentar minimizá-la, os índios, sempre que podem, praticam o escambo, assim como produzem artesanato, que, se antes era exclusivo para uso cotidiano, passou a ser comercializado dentro e fora das suas aldeias, aumentando, de certa forma, a renda familiar”.

Uma experiência única? Quando, por exemplo, na iminência da mudança de século, do XX para o XXI, passei um réveillon na Baía da Traição, a convite da minha amiga pajé. À ocasião, presenciei coisas absurdas, sobretudo o que sobrou das tradições e costumes das tradições e costumes dos índios potyguara. E foi tudo muito incrível, porque, apesar de eu ter nascido em Paris, na França, o meu DNA está impregnado de cultura indígena, sobretudo a potyguara. Coisas da natureza? Não! A minha família é toda do Rio Grande do Norte. Enfim! “Foi exatamente em sua casa [na casa da pajé], na aldeia São Francisco – olhe a influência católica! –, que tive a oportunidade de presenciar mudanças de hábitos tão radicais, motivadas, ao longo dos tempos, pela aculturação, mas, sobretudo, pela pobreza. A mesma pobreza que, aliás, aflige milhares de trabalhadores rurais de todo o Brasil e que – parece – não tem fim. Sim, o que antes era apenas um drama cultural, porque os portugueses negavam todas e quaisquer tradições que não fossem as suas, muito menos as dos aborígines que, aqui, encontraram, passou a ser também um drama social e econômico.

Felizmente, esse drama não é pior porque os índios, ao contrário do que tem dito a maioria dos historiadores oficiosos, nada têm de preguiçosos. Pelo que vi, os índios são pessoas dinâmicas, criativas, enérgicas, determinadas, corajosas e, sobretudo, dispostas ao trabalho, coisa que muito europeu nem sabia o que era. E basta ir a uma aldeia indígena para se ter noção da bravura e integridade desse povo. Um povo, aliás, que continua desafiando os desmandos de autoridades que reproduzem atos e leis de quinhentos anos atrás – instrumentos de força já utilizados pelos portugueses para negarem ao índio, como já dissemos, o seu direito à liberdade e à vida. Mas, apesar de pobres e restritos a um pedaço de terra, vivendo em precárias condições habitacionais e sobrevivendo basicamente do que eles plantam e pescam, os potyguara, hoje, são um exemplo de resistência, embora os mais velhos sintam dificuldades em transmitir para as novas gerações o que restou da sua cultura e das suas tradições” [11], apesar das suas tristes feições, diferentemente da menininha índia, cuja imagem ilustrou o início desta postagem.



Foto: Nathalie Bernardo da Câmara
Curumim potyguara



Bom! “Ao percorrermos uma das aldeias da Baía da Traição, a impressão que tivemos foi a de que estávamos em uma pequena cidade interiorana [qualquer do Brasil], porque, de há muito, ninguém mais mora em oca ou taba, mas em casas de alvenaria ou cobertas de palha e piso de terra batida. Além disso, todos andam vestidos. Nada de mostrarem as suas ‘vergonhas’... Para completar [o drama], a televisão está em todos os lugares. Só que tudo isso apenas contribui para reforçar o que os mais velhos de há muito já sentem na própria pele, ou seja, a ausência de uma identidade indígena, que os una ao presente e os ligue ao passado, visto que é através da língua que um povo mantém a sua identidade cultural. Infelizmente, os potyguara não mais falam a sua língua de origem, o tupy-guarany, mas, sim, a língua portuguesa; não cultuam mais os seus deuses, com exceção de Tupã, e passaram a freqüentar rituais religiosos de terceiros – rituais esses, aliás, que nada têm a ver com os dos seus antepassados, como assim queriam os primeiros jesuítas que, aqui, puseram os seus insolentes pés, desrespeitando e desmantelando uma cultura que, até a sua chegada, com terços e exemplares do evangelho, era soberana.

Falando em soberania, a igreja Católica também perdeu a sua, já que diversos outros templos, de demais religiões, são, igualmente, encontrados nas diversas aldeias dos potyguara. Enfim! Não podemos esquecer a música do branco, invadindo as casas dos índios, expostos ao que há de pior nas rádios e televisões brasileiras. E a coisa é tão grave que, certa hora, chegamos a pensar que estávamos em um pé sujo qualquer, ouvindo lamúrias de bêbados abandonados e apelações sexuais de alguns grupos de forró, para quem, aliás, erotismo é falar de sexo de maneira vulgar, citando trechos da anatomia humana como se fossem bolas de bilhar. Infelizmente, são coisas desse tipo, de tão baixo calão, que os índios têm ouvido, dia após dia, em todo o país, que, inclusive, prejudicam não somente a formação de crianças e jovens indígenas, mas, também, a de crianças e jovens negros e brancos” – matizes são meros e insignificantes detalhes. Só que “o que fazem as autoridades ditas competentes para coibir esses abusos? Nada! No entanto, essas mesmas autoridades bem que podiam criar uma lei, estabelecendo critérios e horários para a veiculação dessas músicas, assim como para determinados programas televisivos”, poupando a audição e a visão de todos nós, de maneira em geral. [12]



Foto: Nathalie Bernardo da Câmara
Cunhantãs potyguara



“É! Não tem sido fácil para os potyguara, embora esses sejam apenas alguns dos muitos dramas que presenciamos durante a nossa permanência na Baía da Traição. Outro drama, por exemplo, são as queimadas, devastando quilômetros e mais quilômetros de mata, transformando o verde em um cenário desolador. E, o que é pior, sem que os responsáveis sejam punidos. Felizmente, da mesma forma que existem as desgraças da vida, existem as graças. Uma das nossas graças, portanto, foi a satisfação da pajé em nos receber, comermos com ela, nos fundos de sua casa, sentados no chão de terra batida, uma comida feita em um fogareiro e, depois, durante a tarde, nos vermos instalados em agradáveis e confortáveis redes. Sim, a hospitalidade dos potyguara continua sendo a mesma de quinhentos anos atrás, ou seja, exemplar. Mas, vale salientar, só para quem eles acham que a merece. Tanto é verdade que demorou mais de um ano para a pajé autorizar a minha ida à tribo dos potyguara na qual ela vive, de onde saí inteira e, agora, cá estou eu, contando história.

Por falar nisso, a única carne de quatro patas que comemos, nos dias em que passamos com os potyguara, foi a carne de uma galinha, ou melhor, a de um frango, e com direito à hormônios, visto que o mesmo foi comprado em um supermercado fora da aldeia. E só não digo a marca do produto para não fazer propaganda. Bom! Além do frango, degustamos o feijão e o arroz da pajé, cuscuz, cabeça de peixe com farinha de mandioca, pé-de-moleque e biju. Os dois últimos, além de outras iguarias, foram feitos na casa de farinha, e constaram, também, do menu do nosso réveillon, abrilhantado, diga-se de passagem, com a presença do cacique, que, junto com a pajé, comandou uma representação do Toré – ritual de passagem votado a Tupã”. Resumindo: De madrugada, “dormindo, acordei sufocada. Para espantar os mosquitos, a pajé detonou quase um tubo de Baygon pelos cômodos da casa, que, detalhe, estava toda fechada. Assustada, com falta de ar, eu perguntei: ‘Fafá, você quer nos matar? Não tem nenhum incenso, aqui?’. Não tinha. Levantamos e abrimos portas e janelas”. [13]



A respeito de um porto inseguro...



Foto: Lula Marques
Protesto de índio nas comemorações dos 500 anos do achamento do Brasil, em Porto Seguro, na Bahia.



“Na maioria dos casos, a historiografia dita oficial do Brasil peca por ser tendenciosa, ocultando, em suas entrelinhas, a verdade de certos fatos históricos. Resultado: a nossa História foi mal contada. E ai de quem conteste! Curiosamente, dizem que, agora, vivemos em uma democracia e que podemos contestar. Será que podemos? Até mesmo porque não foi isso que vimos, em abril de 2000, durante as comemorações oficiais dos quinhentos anos do achamento do Brasil, quando representantes de comunidades indígenas, em Porto Seguro, na Bahia, foram sumariamente reprimidos, apenas porque protestavam contra as comemorações. Afinal, eles, os índios, não tinham nada para comemorar. E com toda razão.

Acontece que todos continuam, ainda, querendo a sua parte do bolo, o que implica em novos sacrifícios. Infelizmente, os sacrificados de hoje são as crianças e os jovens. Os únicos, aliás, que poderiam resgatar a cultura dilacerada de um povo que, há quinhentos anos, não fazem outra coisa a não ser suportar, com dignidade, os sacrifícios que, ao longo dos séculos, lhes foram impostos, e continuam sendo, por todos aqueles que, de 1500 para cá, passam pelo poder, detendo, cada um a seu modo, o controle do gigante, do belo, do forte e do impávido colosso que passaram a chamar de Brasil, dilapidando as suas riquezas e repartindo fatias do bolo com o capital estrangeiro.

Só que, a bem da verdade, o gigante, em 1500, era o povo indígena. Com o seu brado retumbante, o índio habitava as terras garridas, de lindos campos floridos, não fugindo à luta nem mesmo com a chegada dos portugueses. Resistiram. Porém, apesar do tamanho e da força que tinha, o gigante se viu, de uma hora para outra, com as suas pernas e braços atados. Sem perspectivas e, sobretudo, sem grandeza, visto a emboscada na qual tinha caído, ele só viu como alternativa se recolher a sua ini [rede] – o seu berço esplêndido, onde, até hoje, sem o som do mar e sem a luz do céu profundo, ele permanece deitado, como queriam os portugueses e como persistem querendo os que se dizem filhos deste solo.

Infelizmente, estes últimos só estão realmente interessados nas riquezas do país, esquecendo que, em cada tribo indígena do Brasil, muitos acreditam, ainda, em um futuro melhor. Mas, não o futuro que os políticos planejam para eles em seus gabinetes, em reuniões de portas fechadas, sem nem mesmo ouvi-los, mas um outro, independente dos rumos da História. De qualquer forma, nunca é tarde para repararmos certos erros, sobretudo num país de crianças e jovens – não importa se indígenas, negras ou brancas –, em nome das quais o Brasil precisa, urgentemente, adquirir uma identidade – coisa que, aliás, ele nunca teve.

Vai ver, quem sabe, está na hora de termos uma identidade! Só que não é reprimindo as diferenças que conseguiremos isso, mas somando e multiplicando. Por tudo isso e muito mais é que o Brasil só será um país realmente digno de respeito no dia em que uma pajé potiguar – a minha amiga – não mais tiver de passar pelo vexame de ver um dos seus apanhando e sendo arrastado por policiais, colocado às pressas numa ambulância e levado para o hospital – aconteceu em Porto Seguro. Caso contrário, não nos resta cultivar um único sentimento pelo Brasil, ou melhor, pelos que governam este Brasil, que é o sentimento de vergonha...”. [14]






De qualquer modo, o que está valendo, hoje? Creio que, a cada um, uma sentença...



(Continua, já que, apesar do espaço do meu blog ser virtual, tudo tem certo limite... Além disso, o meu computador travou, entrou em pane!)



Nathalie Bernardo da Câmara



NOTAS
[01] da Silva, Giovani José. Antropólogo e doutorando em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/ Campus de Nova Andradina, da equipe de edição da Enciclopédia Povos Indígenas no Brasil:
[02] Terra à vista, artigo, de minha autoria, publicado, neste blog, no dia 5 de setembro de 2009.
[03] Idem.
[04] Ibidem.
[05] Ibidem.
[06] Ibidem.
[07] Ibidem.
[08] Ibidem.
[09] Ibidem.
[10] Ibidem.
[11] Ibidem.
[12] Ibidem.
[13] Ibidem.
[14] Ibidem.


Um comentário:

  1. Bom artigo. Na antiguidade, "indios" em todos os lugares, comprovados em livros,filmes, documentários e arqueologia faziam sacrifícios humanos aos "deuses", certa forma, a colonização, mesmo que desses pseudo-cristaos, influenciaram para acabar com tais rituais.

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