sexta-feira, 2 de novembro de 2012

HISTÓRIA DE CEMITÉRIO*



“Carioca é assim: já nem liga mais para bala perdida. Entra por um ouvido e sai pelo outro...”.

Autor desconhecido


Pode parecer piada ou humor negro, mas, aproveitando a deixa do Dia de Finados, 2 de novembro, lembrei-me de um fato que me ocorreu em 1998, no cemitério São João Batista, em Botafogo – o nome do bairro é sui generis –, no Rio de Janeiro. À época, eu pesquisava a vida da educadora, escritora e feminista norte-rio-grandense Nísia Floresta Brasileira Augusta (1810 - 1885), a fim de escrever um roteiro – já escrito  para um documentário (longa-metragem)  só o filme ainda não saiu, por falta de patrocínio , e precisei ir ao Rio de Janeiro realizar umas pesquisas in loco, considerando que a minha biografada havia morado na Cidade Maravilhosa por muitos anos. Durante a minha pesquisa sobre Nísia Floresta, aproveitei para traduzir um livro de sua autoria, originalmente escrito em francês e publicado em 1878, intitulado Fragments d'un oeuvre inédit – Notes biographiques, no qual ela tece uma elegia ao irmão Joaquim Pinto Brazil (1819 - 1875), advogado, filósofo e filólogo brasileiro – a tradução, Fragmentos de uma obra inédita – Notas biográficas, foi publicada pela Editora da Universidade de Brasília, em 2001.

Enfim! Quando Nísia Floresta escreveu o livro sobre o irmão, ele havia recentemente falecido e, por algum motivo, muitos dados biográficos a seu respeito não foram incluídos na homenagem. Desse modo, como Pinto Brazil também vivera durante muito tempo no Rio de Janeiro, decidi pesquisar na Biblioteca Nacional, em demais instituições em busca de informações seculares que me fornecessem subsídios para a minha tradução e, certo dia, fui ao cemitério de São João Batista, onde Pinto Brazil está sepultado. O único inconveniente é que não seria nada fácil encontrar o seu túmulo com o pouco tempo que eu dispunha, apesar de dispor da sua localização, já que o cemitério é enorme e iria fechar meio-dia, visto que o Brasil jogava naquela tarde – era Copa do Mundo. Sem falar que, provavelmente por causa do evento, o local estava praticamente vazio, fato que, de certa forma, me deixou apreensiva, pois estava sozinha e não sou afeita a nada fúnebre.

De posse, então, das coordenadas do túmulo de Pinto Brazil, as quais me foram fornecidas por uma funcionária do cemitério, comprei um cravo em uma floricultura defronte e entrei no cemitério, rodando alas e mais alas à procura da tal sepultura, sem encontrá-la. De repente, apesar do medo daquela solidão sepulcral e já quase perdendo as esperanças de encontrar o tal túmulo – o cemitério fecharia em minutos –, eis que, para minha surpresa, dei de cara com o meu objeto de busca. Ocorre que a sepultura de Pinto Brazil foi edificado literalmente na vertical, sem nenhuma inscrição em suas laterais. Resolvi, então, ousadamente, subir nela – não profanei nada! No alto, encontrei alguns registros. No entanto, quando eu estava fotografando-os e anotando-os em um bloco de papel, ouvi tiros. Foi aí que, quando dei por mim, percebi que era um tiroteio entre duas favelas que circundam o cemitério. Era tanta bala que, assustada, desesperada, quase levei um tombo.

Mesmo assim, ainda tive tempo para depositar o cravo que eu havia comprado na floricultura sobre as inscrições lapidadas na sepultura, desejar bom sono ao finado e pulei, por pouco não quebrando um pé ou uma perna, e, com medo de ser atingida por uma bala e morrer ali mesmo, em pleno cemitério, sai correndo. O problema é que o portão principal do cemitério ficava distante de onde eu estava e achei que não iria conseguir chegar viva até ele, que levaria um tiro e que só encontrariam o meu corpo no dia seguinte – quanta ironia, morrer atingida por uma bala perdida cercada de tumbas... Foi surreal! De qualquer modo, ao alcançar o escritório do cemitério, logo na entrada, encontrei a funcionária, que já estava prestes a ir embora – por pouco eu não teria ficado trancada dentro do cemitério... Sensibilizada com a minha aflição, ela gentilmente me forneceu um livro de registros dos mortos que eles mantêm lá, e, outra surpresa, encontrei alguns outros dados sobre Pinto Brazil.

Dados esses, inclusive, até então inéditos para aqueles que pesquisam a vida de Nísia Floresta. Entre eles, por exemplo, a causa mortis de Pinto Brazil  daí eu costumar dizer que o ponto de partida para qualquer pesquisa de caráter biográfico sejam as igrejas, os cartórios e os cemitérios... Em alguns casos, hospitais também. Enfim! Depois disso, já mais calma, tratei de cair fora daquele lugar de natureza mórbida e acho que peguei um táxi, nem me lembro direito até hoje, ou chamei Aída Marques, uma amiga cineasta. Recordo-me apenas que fui encontrar uns amigos que estavam reunidos para assistir ao jogo do Brasil em um bar, no bairro de Ipanema. Logo eu, que não suporto futebol! – muito menos durante a Copa do Mundo, onde pulula uma irritante e repulsiva histeria coletiva. Ocorre que, naquela ocasião, eu não tencionava voltar ao apartamento deixado aos meus cuidados por um amigo cônsul da República Dominicana. Só de pensar no tiroteio que presenciei no cemitério – nem sei como os mortos não despertaram –, eu só queria me cercar de vivos. Nem que fosse de vivos histéricos...


Nathalie Bernardo da Câmara


* Publicado originalmente há 1 ano.

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