quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012


AS SENHORAS DA PRAÇA DO RELÓGIO*




Por Nathalie Bernardo da Câmara


TÃO LOGO RETORNOU da sua caminhada matinal diária, a primeira coisa que ouviu, ao abrir a porta de casa, foi o estalar contínuo dos ponteiros de um relógio ordinário na bancada de um armário da sala: tic-tac, tic-tac, tic-tac... Mantenedora de uma rotina exemplar, C. E. parecia regulada pelo ritmo dos ponteiros do seu relógio barato. Colocando uma chaleira com água para ferver no fogão, ela tomou banho, vestiu roupas sóbrias e foi passar o café, que bebeu calmamente com um pão melado de margarina. Em seguida, ingeriu alguns comprimidos com um pouco de água, apanhou um exemplar da Bíblia que estava sobre a mesa e saiu, fechando a porta atrás de si. Atravessando a rua, seguiu em direção ao templo de uma Igreja pentecostal que frequentava. Afinal, o culto não tardaria a começar e ela, juntamente com demais fiéis, orava por quase uma hora. Diariamente. Religiosamente.

Aos sessenta anos de idade, o cotidiano de C. E. assemelha-se ao da maioria das mulheres da sua faixa etária: por orientação médica, já que é hipertensa, caminha diariamente, toma café, remédios controlados e frequenta uma igreja. Dinâmica, desconhece o que seja monotonia, já que, além de vender cosméticos de porta em porta, de montar uma banca na feira popular da cidade nos fins de semana, ela ainda é – detalhe – uma garota de programa, ou melhor, uma senhora de programa, batendo ponto nem que seja uma vez por semana, sempre à tarde, na Praça do Relógio de Taguatinga, cidade satélite do Distrito Federal... Sim, C. E. também é uma profissional do sexo. Exerce aquela que é considerada a mais antiga das profissões desde que o mundo é mundo, embora, há dois anos, muitos a vejam saindo sempre como um mesmo homem. Nenhum outro.

O motivo, contudo, que levou C. E. a se prostituir foi a busca pelo prazer. Saiu uma vez, gostou e decidiu continuar, embora admita que com o dinheiro que ganha fazendo programas paga uma conta ou outra, complementando, assim, a sua renda familiar, já que aposentada como dona de casa não tem mais o marido, de quem é separada, para sustentá-la, embora tenha tido com ele cinco filhos e estes tenham lhes dado netos que, aliás, de vez em quando ela cuida, sem falar que, vez ou outra, eles a visitem no banco da praça onde ela costuma se sentar para esperar o seu cliente exclusivo, com quem, inclusive, pretende se casar, alimentando, romanticamente, o sonho de todas as Cinderelas. Orgulhosa, costuma dizer que todos na família sabem da sua opção e a respeitam, embora o pastor da sua igreja insista em orar por ela, para que se liberte das tentações do corpo e mude de vida.

Só que para quem pergunta se ela quer se libertar e mudar de vida, C. E. estampa um sorriso malicioso nos lábios e diz que, apesar de pertencer a Jesus, embora reconheça não ser tão fiel, já que vive pecando, ela responde que não pretende se libertar, mas quer que Deus lhe dê um marido. Enquanto isso não acontece, ela e demais senhoras e garotas de programa vão dividindo a praça com evangélicas – falta espaço para todas –, que, todos os dias, igualmente batendo ponto, erguem as suas Bíblias e esbravejam orações e cantos religiosos, no intuito de evangelizar as profissionais do sexo, repetindo, exaustivamente, a necessidade de libertá-las. Achando pouco o trabalho de evangelização na praça, muitas evangélicas não desistem da missão e insistem em visitar as garotas e senhoras de programa nas suas casas. É, literalmente, um verdadeiro assédio religioso.

E a praça, ambiente de congraçamento, cumprindo com a sua função, com todos que a frequentam vivendo em harmonia: as profissionais do sexo, independentemente de faixa etária; os seus clientes; as evangélicas; as crianças a brincar; o vendedor de café, coxinhas e pastéis requentados; os transeuntes que passam; os mendigos; os tradicionais casais de namorados; os usuários de crack e os do metrô, cuja boca fica próxima ao relógio; os moradores locais, além dos comerciantes que possuem estabelecimentos nos arredores. Sem falar nos agentes de saúde que distribuem camisinhas e sopa uma vez por semana não somente para as garotas e senhoras de programas cadastradas em um programa social do governo, mas também para usuários de drogas. Tudo na mais santa paz, na mais garantida das proteções, já que a poucos metros da praça existe uma delegacia...

C. E., por sua vez, não se mete em encrenca. É precavida. Nunca entrou em carros de desconhecidos e só vai a motéis da redondeza. Prevenida, sempre sai com camisinha, mas não com as que são distribuídas pelos agentes de saúde semanalmente. Ela costuma dizer que já ouviu dizer que essas camisinhas são falsas, preferindo usar as que a filha compra na farmácia, embora reconheça que as campanhas de prevenção do Ministério da Saúde sejam eficazes, fáceis de serem entendidas. Politizada, uma das expectativas de C. E. é a de que seja aprovada uma lei que legalize a prostituição, o que garantiria, entre outros benefícios, o da aposentadoria para quem exerce a profissão. Ao mesmo tempo, a exemplo de algumas colegas de ofício, ela também reconhece a importância do Estatuto do Idoso, no caso, para as senhoras de programa, como ela, que, se necessário, lhes dá amparo legal.

E de amparo em amparo, de abraços a abraços, legais ou não, C. E. diz que a vida pode não ser um mar de rosas, mas só a saúde que tem já é uma benção divina, embora faça das tripas coração para superar as adversidades da vida. Contrariando, contudo, os céticos de plantão, que não acreditam que prostituta não sonha, não beija, não se envolve emocionalmente com o parceiro e que fazer sexo por prazer não passa de uma fase angelical, que, inclusive, com o tempo, pode fazer da pessoa uma aliciadora e, posteriormente, uma cafetina, C. E. está sempre de bem com a vida e, apesar de nunca ter se sentido uma Cinderela, ainda acalenta o desejo de se casar com o seu único cliente. Quem sabe, assim, ela possa, finalmente, viver o seu sonho de valsa. Porém, enquanto isso não acontece, ela segue em frente, segurando a mão de Deus e a da vida...


*Registrado no Escritório de Direitos Autorais - EDA, da Fundação Biblioteca Nacional - FBN, originalmente em formato de roteiro para um documentário (curta-metragem) – ainda inédito – homônimo.

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