quarta-feira, 4 de abril de 2012

ROUPA SUJA SE LAVA NO JORNAL*


Lua de mel (1816) – Charge de autoria do chargista e caricaturista inglês Thomas Rowlandson (1786 - 1827)



Troca de desaforos entre sogro e genro, em encarte guardado na Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional, expõe aos leitores a intimidade da família inteira

Por Lia Jordão**


O “Annuncio de Antonio José da Cunha” e a “Resposta ao annuncio” por Bernardo José da Costa, impressos por encomenda dos autores na Imprensa Imperial e Nacional, circularam em 1826. Encartados no Diário Fluminense com uma semana de diferença, os documentos contam uma briga de família de folhetim para novelista nenhum botar defeito. Também antecipam a promiscuidade entre público e privado à altura dos tempos de Facebook ou Twitter.

Tudo começa com a publicação do libelo de Antonio José. Danado da vida com o que chamou de “execrável profanação”, divulga um rol impressionante de improbidades cometidas contra sua pessoa por sua esposa, seu genro e sua filha. Explica que, após ausência de três anos, retorna à Corte e ao lar e encontra sua mulher grávida do genro! Este, por sua vez, havia “violado a pudicícia” de sua filha, com quem acabou se casando para reparar o malfeito.

Com profunda dor de cotovelo, Antonio se esmera na descrição de seus desgostos: sua esposa, “esquecida dos sentimentos de pudor, o mais belo ornamento de seu sexo, quebrou a união conjugal, e que fora seguida de sevícias e (…) escandalosas libertinagens”. Seu sofrimento era tamanho que “as lágrimas involuntariamente corriam de seus olhos”! O leitor quase se solidariza com o infeliz, injustamente “lançado à desonra pública”. Não bastasse, o marido traído acusa a família de se unir para matá-lo, asfixiando-o com um pau e aproveitando sua vulnerabilidade momentânea para derrubá-lo escada abaixo, sem dó nem piedade. Felizmente, Deus fez a sua parte e ele escapou da morte. Em seguida, a família saqueia sua casa, levando as pratarias e objetos de valor. E ainda foge para providenciar o aborto da criança e dar sumiço às provas do adultério.

A indignação do marido vai explodir quando, “buscando o caminho das leis, persuadido de que só nelas o cidadão encontra segurança”, se vê diante de um Tribunal “insensível às suas lágrimas e indiferente à causa dos bons costumes”. É a gota d’água! Ele decide que, “se o Altar da Justiça foi só para proteger o crime tão funesto na ordem da sociedade, eu os deixarei entregues à opinião pública, que os conhece e detesta…”. Tenta desmoralizar o sistema jurídico, dizendo que este se valeu de falsos testemunhos para contradizer a acusação, recrutando “mulheres corrompidas e cúmplices”. Além disso, questiona a legitimidade da sentença, uma vez que, segundo ele, tinha tido parecer favorável do próprio imperador.

O outro lado da história aparece na semana seguinte, quando o genro conta sua versão usando os mesmos meios do sogro. Encarta no jornal sua “Resposta”, desmentindo todas as acusações do “caluniador” e trazendo novos elementos para o enredo.

Conta que seu casamento com a filha, “a quem ternamente ama”, foi absolutamente legítimo e contou com a aprovação do pai, que inclusive deu como presente de casamento dois escravos, e os convidou para viver em sua casa. E que em hipótese alguma praticaria o abominável “adultério incestuoso” com sua sogra, bem como o aborto do suposto feto. Segundo Bernardo, foi ganância a origem de todo o mal: seu sogro – “chefe cabeçudo, teimoso e insolente” – quis obrigar a esposa a assinar um papel em branco que lhe permitisse dilapidar o patrimônio familiar e ir embora com o dinheiro.

Bernardo nega veementemente a acusação de tentativa de assassinato. Relata que foi o próprio caluniador que chegou à casa, diante da recusa da esposa a assinar o papel, “levando o seu danado espírito de raiva e impróprio do sexo varonil, qual foi – o entrar a fazer bulha em casa com um pau de machado e ao mesmo tempo gritar (…) contra a mulher, filha, e genro, que o matavam….”. E solta o verbo sem pudor: “Endiabrado homem! Manhoso! Embusteiro!”. Aproveita também para refutar a acusação de roubo.

O genro encerra com eloquência: “Em poucas palavras: Antonio José da Cunha esteve em Santos quatro anos menos quatro meses, vivendo como ele quis, sem querer saber da família que aqui deixara; sem lhe mandar socorro algum para a sua subsistência; precisando sua mulher e filha lavar e engomar roupas de estranhos para viverem.” Ora, quem vai à roça perde a carroça, amigo!

Diante de tal discrepância de relatos, não seria possível tomar partido. Afinal, apesar de ambos apelarem para o juízo da opinião pública, diz o ditado que em briga de marido e mulher não se mete a colher. Mas que a fila anda, anda…


*Texto publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional, edição nº 75 - dezembro 2011.

**Lia Jordão é formada em História e trabalha como técnica em pesquisa na Coordenadoria de Pesquisa da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.


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